Lucidez - Quando a separação anunciou sua chegada
- Karoline Pereira
- 19 de nov. de 2024
- 5 min de leitura

Ontem, atendi uma cliente que me contou que estava arrumando seu estúdio. Disse que precisava organizar aquele espaço e que não sabia como daria conta, pois ao longo do processo foi percebendo que ela tem muitas coisas naquele lugar. Eu fui atravessada por sua narrativa. Ela, minha cliente, me levou para um breve tour em seu espaço e me mostrou coisas que ela produziu ao longo dos anos. Ela narrou como se fosse uma coisa qualquer, mas para mim foi forte a sensação de assisti-la reencontrando pedaços de si. De alguém que ela já foi, mas que de alguma forma se perdeu no meio de tantas outras escolhas que ela fez para a própria vida.
A nostalgia é completamente minha, não dela. Eu me peguei atravessada pela sua ação de revirar suas coisas, porque eu estou adiando o momento em que vou encaixotar minha vida mais uma vez. Não por puro desgaste que é encaixotar as nossas coisas para mudar de casa, mas porque eu não queria em absoluto me mudar. Posso parecer uma criança birrenta, mas eu sei, eu sei o quanto vai me custar embalar minhas coisas novamente e ir embora daqui.
Eu sinto que estamos perdemos a capacidade de pertencimento. As casas parecem mais dormitórios ou cavernas em que nos isolamos do mundo. Nossas origens parecem enfraquecidas, quase esquecidas em nossa própria história.
Carregamos as vozes daqueles que nos criaram, mas não somos capazes de reconhecê-las como diferente da nossa própria voz. Parecemos aprisionados em discursos que não nos pertencem.
O enraizamento, a sensação de fazermos parte de algo maior do que nós mesmos tem se tornado algo raro, difícil de encontrar. Os valores são tão rarefeitos que mudam de acordo com as tendências do marketing. Tudo parece ter prazo de validade, ditado por alguém que não nós mesmos. Ficamos constantemente insatisfeitos, vazios, ávidos por mais e mais… Mais o que, afinal?

Estou meio amarga no meu texto, mas é porque eu estou sofrendo. Sofrendo, porque eu pude vislumbrar a vida que eu queria levar, e isso perpassa coisas materiais também, mas acima de tudo, me tocou no que eu tenho de mais íntimo. Um valor que eu carrego comigo e não tinha a dimensão da sua força até a chegada da minha filha. Tudo que eu mais desejei e sonhei construir, eu construí. Uma família, quase a família da propaganda de margarina, mas na versão LGBT. Casa linda, arrumada, criança linda, bem cuidada e até mesmo um jardim de legumes e ervas. E eu, tentando sustentar a dona de casa perfeita que quer dar conta de tudo e ainda ter uma carreira bem sucedida. Já sabemos onde isso vai dar, não é mesmo?
Me ver diante da ruptura desse sonho, me colocou a questionar como levo a minha vida, afinal. Sempre me achei muito consciente, mas acho que a lucidez é o que me faltou.
Conseguir encarar a vida tal como ela é, sem essa lente, essa maquiagem, esse filtro de embelezamento que tanto estamos acostumados a colocar naquilo que vemos tem sido o processo mais doloroso que venho enfrentando.
E, minha nossa, como eu quis escorregar de volta para a ilusão! Ah, minha terapeuta que sabe! Quantas vezes ela não me avisou, quantas vezes ela me ajudou a voltar meu olhar para o que é real. Dolorosamente, venho num processo de enxergar as coisas como elas são. Mesmo que isso significa soltar o que eu mais desejei em toda minha vida, afinal, esse último ano foi a prova de quem vivia aquele sonho era apenas eu.
E era mesmo um sonho. Sonho que muitas vezes vinha carregado de cenas reais. Não só de coisas que eu não queria admitir, mas também de momentos bonito e carregado de amor. Não posso ser injusta, a vida não é uma divisão simplista de bom e ruim, certo e errado… Na verdade, é tão complexa que tudo se mistura e não fui capaz de dar conta das coisas difíceis que emergiram. Eu escolhi fechar os olhos por muito tempo. Mas a sujeira empurrada para debaixo do tapete pode ser tão grande que fica difícil não tropeçar nela constantemente.
A sensação de morte, de que alguma coisa morreu me acompanha diariamente. Faço trajetos de carro e não consigo evitar a forte sensação de que em breve será a última vez. De que não vou mais percorrer esse caminhos, que não verei os flamboyants mudando de verde para vermelho, para então ser verde outra vez. Que não vou mais ver as borboletas pintarem o cenário no intervalo da colheita e plantio de soja. O pôr do sol que assisto eventualmente num retorno do mercado ou parque. Por dias, senti que eu padecia lentamente. Dolorosamente eu me dizia, aproveita… Aprecia… Enquanto puder.
Fui tomada por uma raiva imensa. Passei dias furiosa. Olhava para tudo ao meu redor e queria romper em lágrimas furiosa. Sabe aquela explosão de birra que uma criança é capaz de fazer? Era o que eu desejava. Olívia chora gritando. Desde bebezinha, seu choro é estridente, um choro com gritos. Na medida que foi crescendo, os gritos cresceram também. Por vezes, percebo que ela grita mais do que de fato chora. E eu tenho uma sensibilidade muito grande para barulhos muito altos. Houveram dias que seus gritos pareciam cortar meus ouvidos. Eu sentia tudo tremer, como se pudesse ser capaz de sentir fisicamente a vibração nos tímpanos.
Eu a invejei. Como eu queria ser capaz de gritar como ela grita. Era exatamente o que eu queria fazer. Gritar até não sair um som sequer. Gritar até me esvaziar daquela fúria, daquela dor, da constante sensação de que eu estava morrendo sem saber o que fazer para evitar o fim que eu tanto temia. Mas nada. Nenhum grunhido sequer. Eu, Karol, não consigo gritar em momento algum, nem naqueles aceitáveis - tipo numa montanha russa. Simplesmente não consigo me permitir tal esvaziamento…
Então, eu só chorei. Chorei intensamente. Chorei até esvaziar.
Lucidez. A crueza das coisas. Minhas escolhas escancaradas diante de mim. Carregando consigo todas as suas consequências. Oh sim, nenhuma escolha segue sozinha, toda e qualquer escolha traz consigo consequências. Seguir vivendo uma ilusão não é mais possível, uma vez que tudo veio a tona. Pode existir um momento na vida, e eu acredito veementemente nisso, em que não temos como fugir de quem somos, de como nós estabelecemos nossas relações conosco e com quem nos cerca. Nesse momento temos uma escolha muito importante diante de nós. Seguir vivendo uma ilusão que nitidamente já não esta se sustentando, ou encarar a realidade tal como ela se apresenta.
Vacilei na minha escolha, mas eu não sou mais capaz de sustentar minha própria ilusão.
Não quero mais gastar minha energia para manter essa vida iludida que vivi no último ano. O preço a se pagar é muito alto. Eu quero uma vida real, verdadeira, sem filtros, sem adereços. Quero louça na pia, roupa na máquina, casa organizada. E quero plantas!
Plantas são constantes lembretes de que a vida precisa de cuidado senão murcha, seca e por fim morre? Aprendi que assim são as relações.
Então, dolorosamente, assisto minha ilusão escoar ralo abaixo. Fico com cenas reais. Guardo memórias doces, carregadas de afeto e carinho. Aprenderei a honrar a história que foi construída, mas que encontrou um ponto final. É a nossa separação.
Rupturas podem ser momentos muito dolorosos, carregando consigo uma boa dose de desesperança, desenraizamento, perda de sentido. Por dias, vivenciei momentos de profunda tristeza beirando um desespero. Eu tenho amparo, tenho amigas que conseguem me ouvir, pessoas que se importam com meu bem estar. E eu tenho minha terapeuta, que mais uma vez, tem sido um guia, suporte e um apoio essencial para eu não me perder dentro das minhas fantasias. Eu não sou defensora de terapia para tudo. Mas eu sei que para muita gente, apoio, amparo, suporte e escuta não é tão comum ou disponível. Eu, apesar dos meus processos, estou aqui se você precisar.
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